Quando o amor perde o cuidado: por que casais passam a se tratar com menos gentileza com o tempo?

“Será que tem uma cláusula no contrato da relação que autoriza tratar o outro com menos gentileza depois de alguns anos juntos?”
Essa pergunta, embora retórica, revela uma dor comum em muitos relacionamentos amorosos: a constatação de que, com o tempo, os gestos de cuidado diminuem e a agressividade cotidiana aumenta. Palavras duras, impaciência, ironia e desatenção vão substituindo a curiosidade, a escuta e o afeto. Mas por que isso acontece?
O Processo de Habituação: Quando o Extraordinário Vira Rotina
Uma das explicações vem do que a psicologia chama de habituação: um fenômeno em que a repetição constante de um estímulo leva à diminuição da resposta emocional (Sato, 1995). No início da relação, tudo é novidade — o modo de falar, os gestos, o cheiro, o toque. Mas com o tempo, o que era encantador vira previsível. Os parceiros passam a “economizar” esforço relacional e, às vezes, tratam quem mais amam com menos delicadeza do que tratariam um estranho.
Esse processo não é, por si só, uma sentença de desgaste. O problema é quando a habituação vem acompanhada de frustrações não elaboradas, mágoas acumuladas e uma crença silenciosa de que o amor basta por si só — sem a manutenção cotidiana.
A Ilusão da Intimidade Permissiva
Muitos casais caem na armadilha da intimidade permissiva — a ideia de que, por estarmos próximos, podemos nos permitir falar sem filtros, desabafar sem cuidado, ou mesmo “explodir” porque o outro “nos conhece”. Mas estudos mostram que o desprezo, o sarcasmo e a crítica são os maiores preditores de separação conjugal (Gottman & Silver, 1999). O amor, longe de ser desculpa para a grosseria, exige mais responsabilidade emocional — não menos.
O Ciclo Disfuncional Segundo a IBCT
A Terapia Comportamental Integrativa de Casal (IBCT) oferece uma explicação consistente: muitos casais entram em ciclos coercitivos. Um parceiro expressa frustração de forma crítica; o outro se defende ou se afasta. Isso reforça negativamente o padrão — o silêncio “funciona” como alívio temporário da briga, mas mantém o ciclo hostil.
Além disso, a IBCT reconhece que cada pessoa traz uma história emocional própria. Traumas, inseguranças e estilos de apego influenciam como cada pessoa lida com o conflito. O problema, então, não está apenas no conteúdo da conversa, mas na forma como o casal se regula emocionalmente em momentos de tensão.
É possível reverter este ciclo?
A IBCT propõe um caminho com dois eixos: aceitação e mudança. Algumas das principais estratégias terapêuticas podem ser aplicadas por casais que desejam romper com esse ciclo do descuido:
Estratégias de Aceitação:
° União empática
- É o esforço ativo de olhar para a dor do outro sem julgamento. Isso envolve escutar com curiosidade, reconhecer que por trás da raiva há medo, vergonha ou tristeza, e validar a experiência emocional da parceria.
° Distanciamento unificado
- Consiste em nomear o ciclo disfuncional como algo externo ao casal. Em vez de dizer “você sempre me ataca”, o casal aprende a dizer “estamos naquele ciclo de crítica e silêncio de novo”. Isso muda o foco da culpa para a cooperação.
° Tolerância ativa
- Envolve reconhecer e aceitar aspectos do outro que talvez não mudem, aprendendo a responder com menos rigidez e mais compreensão. Isso não é resignação, mas a construção de uma convivência baseada em compaixão e realismo afetivo.
° Estratégias de Mudança:
° Comunicação
- Aprender a falar com clareza e assertividade, pedir em vez de acusar, e validar em vez de corrigir. Falar dos próprios sentimentos e pensamentos. Para quem escuta, dar abertura à compreensão da perspectiva da outra pessoa, não precisa concordar, mas avaliar que no lugar do outro é o que está acontecendo. Importante, ainda, é observar a intensidade da expressividade emocional e regulá-la. Assim, a comunicação torna-se uma prática de cuidado, mesmo nas divergências.
Gentileza não é supérflua, é estrutura
A convivência duradoura não deve autorizar o descuido — ela exige um compromisso renovado com o respeito, a escuta e o cuidado. Quando um casal se permite tratar com menos gentileza do que trataria um colega de trabalho ou um estranho na rua, algo essencial se perde.
Não há cláusula no contrato do amor que autorize a grosseria. Mas há, sim, uma promessa implícita: de ser abrigo, de ser presença segura, de se esforçar para tratar com dignidade quem escolhemos amar.
Referências
Christensen, A., Doss, B. D., & Jacobson, N. S. (2020). Integrative Behavioral Couple Therapy: A Therapist’s Guide to Creating Acceptance and Change (2nd ed.). W. W. Norton & Company.
Gottman, J. M., & Silver, N. (1999). The seven principles for making marriage work. Crown Publishers.
Sato, Takechi. (1995). Habituação e sensibilização comportamental. Psicologia USP, 6(1), 231-276. Recuperado em 29 de julho de 2025, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-51771995000100011&lng=pt&tlng=pt.
Este texto é de autoria do membro da equipe CEFI Contextus - Mara Lins