Consciência e Competência
Hoje retorno a essa gloriosa coluna de literatura psicológica para dividir reflexões acerca dos quatro níveis de aquisição de uma habilidade no que diz respeito à consciência deste processo de aprendizagem. Em bom português, sobre saber o quanto sei e o quanto não sei.
Esse modelo, chamado originalmente de “quatro níveis de ensino” (four levels of teaching – De Phillips, Berliner e Cribbin, 1960), adquiriu muita popularidade em várias áreas, especialmente na psicologia do aprendizado. Ele leva em consideração dois vetores – o quão consciente estou sobre minha habilidade sendo desenvolvida, e o quando habilidoso eu estou.
Aproveito para divagar um pouco sobre como poderíamos abordar cada uma dessas etapas de aprendizado no processo psicoterapeutico (entendendo que as terapias comportamentais contextuais apostam enormemente no processo de desenvolvimento de habilidades).
Primeira etapa: Incompetência inconsciente
(Processo de desesperança criativa, quem sabe?)
“Por que essas coisas acontecem comigo?”
Aqui nesta etapa não existe propriamente uma clareza da própria situação. Por exemplo, minhas emoções desregulam porque tenho muito azar em ser assim. Não tenho clareza de que existe um conjunto de habilidades a serem adquiridas, as quais eu tenho em nível ainda pouco desenvolvido.
Como muitas dessas habilidades são desenvolvidas de maneira indireta, implícita ou não verbal, por modelagem, por exemplo, é comum que pessoas que têm a habilidade em questão já desenvolvida sequer saibam como a desenvolveram ou que a tem. Assim, não conseguem ajudar, apenas exigindo que a pessoa cumpra determinada tarefa, ou desista. Sem uma clareza que é uma habilidade, não existe como sistematizar seu aprendizado.
Por vezes posso dizer “sou muito ruim em coordenação motora, e portanto não vou aprender a tocar o piano”. Tocar piano é claramente percebido como uma habilidade a ser desenvolvida, mas a coordenação motora é vista como uma característica inata e não treinável.
É uma coisa difícil de negar o fato de que todos nós temos algumas características que tornam certas habilidades mais fáceis ou difíceis de serem desenvolvidas, mas não é necessário pensar em desenvolver a maestria – apenas a competência, que, frequentemente, a grande maioria poderá desenvolver.
Identificar que muitas das minhas dificuldades estão relacionadas a déficits no meu repertório de habilidades é o primeiro passo – isso é algo que não sei fazer…
… mas posso aprender!
Segunda etapa: Incompetência consciente
(Processo de motivação)
“Cada passo em uma jornada de mil passos, inclusive o primeiro e o último, são apenas um passo”
A partir da consciência de que existe uma habilidade, ou conjunto de habilidades, que modificam minha vida na direção que eu quero levar, posso escolher deliberadamente me comprometer em desenvolver essas habilidades. Posso buscar treinamento, literatura, vídeos. Mas uma vez que é visto, não poderá ser desvisto – não é uma coisa pela qual não posso mais me responsabilizar. Não no sentido de me culpar – já passou – e sim assumir as rédeas – de agora em diante vai ser diferente.
Esse processo demanda bastante auto-compaixão, pois começar a aprender uma habilidade nova poderá ser muito frustrante. Tentar aplicar métodos, descobrir que não sei tão bem assim, esquecer na metade do caminho, ter que revisar, aplicar lembretes, fracassar (de maneira um pouco diferente, quem sabe?), procurar outro método – é um processo deliberado, possivelmente lento e talvez bastante envolvido.
O gancho que faço é que é uma oportunidade de treinar uma série de habilidades úteis – tolerância ao mal estar, perseverança, autocompaixão, descrever sem interpretar (“nossa, estou indo muito mal, nesse ritmo nunca vai dar certo”, etc). Um bebê leva anos para adquirir fluência verbal mínima!
Apenas manter a orientação e a progressão, mesmo que lenta, ou seja, caminhar na direção correta, mesmo que devagar, nos leva obrigatoriamente ao sucesso, que, para nós, é a competência minimamente necessária, e não a maestria.
Terceira etapa: Competência consciente
(Processo de generalização e domínio)
“Primeiro passo, segundo passo, terceiro passo”
Tendo a competência minimamente necessária instalada, não vamos criar ilusões. Esse passo não é o fim da jornada, e, na verdade, a divisão entre competência e incompetência é um processo, e não um ponto de corte. Uma vez que tenhamos a habilidade mínima, é importante colocar aquilo sempre em prática.
Às vezes temos uma habilidade bastante estruturada, mas as circunstâncias da vida não se encaixam perfeitamente à teoria. Esse jogo de cintura necessário para adaptar a habilidade às situações corriqueiras quase que totalmente idênticas à situação original vai dando espaço para situações um pouco diferentes, um pouquinho mais diferentes… Isso traz um senso de domínio sobre a habilidade.
Cada vez mais podemos torná-la automática, mas ainda precisamos nos lembrar – quais eram os passos do DEAR MAN, mesmo? Ou, para dirigir, começo arrumando os espelhos, botando o cinto… Checando os faróis.
Se faço isso em vários contextos diferentes de imediato, me perco muito facilmente. Fico nervoso, com medo. Não é necessário se desafiar de início, e sim sistematizar aquele aprendizado. Dividir, ensinar pode ajudar muito!
Quarta etapa: Competência inconsciente
(Processo análogo: Mindfulness e estado de ‘flow’)
“Seja como a água, meu amigo”
A água assume o formato do copo quando ela está em um copo, e de uma garrafa quando está em uma garrafa. Não necessita fazer esforço para tal, as leis da física fazem o esforço pela água.
Talvez esse nível de maestria seja realmente exagerado, mas a mensagem é clara: após treinar, adquirir competência, generalizar essa habilidade para diversos ambientes, em algum momento ela começa a acontecer mais e mais sem ter que ser pensada, evocada de maneira deliberada.
É comum o uso dos exemplos da bicicleta ou de dirigir veículos, mas eu penso antes no exemplo da linguagem. É uma habilidade aprendida tão completamente que não conseguimos sequer desligá-la. Tente olhar para a letra E e imaginar três linhas horizontais tocando uma linha vertical, sem evocar o som que associamos. É quase impossível!
O objetivo principal do aumento de repertório é chegar nessa etapa. Porque assim podemos ocupar nossa vida com outras coisas mais importantes, o objetivo de aprender as tais habilidades. Estando mais regulado emocionalmente posso ter conversas significativas sobre as coisas que me incomodam em primeiro lugar. Tendo maiores habilidades pessoais posso fazer amigos, namorar. Imagine estar pensando em estratégias de sedução e habilidade efetiva no meio de um diálogo com um namorado, como vou prestar atenção em tudo que está sendo dito, ou mesmo aproveitar aquele momento de forma leve e descontraída?
Mesmo que eu não saiba e domine tudo que há para saber, enquanto eu não generalizar as habilidades que eu necessito não posso aproveitar os momentos de maneira autêntica e espontânea sem correr risco de retomar algum comportamento indesejado previamente.
Nos esforçamos para poder nos esforçar menos. E nossos valores impulsionam novos horizontes, novas metas, que demandam novos esforços. A verdade é que não paramos nunca de aprender enquanto estamos vivos, e, se tivermos clareza dos nossos valores, talvez nunca queiramos parar de aprender.
Este texto é de autoria do membro da equipe CEFI Contextus – Emmanuel Kanter