A “síndrome do segredo” e o abuso sexual infantil.
O caso de uma menina de dez anos, vítima de violência sexual por parte de um tio, e da qualresultou uma gestação, trouxe debates acalorados e posicionamentos radicais, impregnados dejulgamentos morais, valores religiosos, questões bioéticas e esforços por parte de profissionais de saúdena tentativa de trazer um pouco de racionalidade para um palco social em chamas.A sucessão de violências sofridas pela vítima desde os seus 6 anos de idade parece não ter fim comsua identidade e paradeiro sendo revelados em redes sociais, e culmina com manifestações e acusações deassassinato contra a criança vítima de abuso na porta do hospital em que submetia-se ao procedimento deabortamento legal. Para além do já repulsivo crime de abuso sexual contra uma criança, agravado pelarevitimização de uma gravidez aos 10 anos de idade, assistimos consternados à reação visceral de parte dasociedade que criminaliza a vítima de forma cruel.Cientes que estamos do direito ao sigilo que foi de forma criminosa negado à vítima, bem como dasconsequências futuras que se somarão aos impactos da violência em sua saúde física e mental, resta-nostirar algo que dê algum alento diante desse triste episódio: um chamado!Somos chamados a enfrentar uma realidade que dilacera, que dói, que revolta, que “embrulhaestômagos”, mas que está aí. Não só a realidade do abuso, mas da violência social imposta à vítima. Somoschamados a educar a sociedade coletivamente sobre a dinâmica do abuso sexual, a refletir sobre asdificuldades que crianças, adolescentes e suas famílias enfrentam para verem seus direitos asseguradospelas leis brasileiras. As vítimas de estupro já tiveram seus direitos de assistência, incluindo o abortamentolegal em casos de gravidez decorrente de estupro, reconhecidos pelas entidades médicas e jurídicas, alémde suporte social e psicológico. Fomos todos, sociedade, educadores e profissionais de saúde igualmentechamados a nossos papéis como como corresponsáveis na garantia desses direitos.Vimos estupefatos comentários que acusam a vítima de cumplicidade com seu agressor, quequestionam sua condição de vítima por aceitar passivamente a violência que lhe roubou a infância e suainocência aos seis anos de idade. Somam-se a isso convicções dogmáticas mal amparadas em princípiosreligiosos distorcidos, que infligem mais dor e sofrimento à vítima, além de total ignorância quanto asaspectos médicos e psicológicos de uma gravidez em tão tenra idade.Dentre todas as violências sofridas por esta criança, o julgamento vil quanto ao silêncio da vítima deabuso sexual durante anos não vislumbra o que é o seu principal motivador e mantenedor: avulnerabilidade da vítima diante do agressor. Sabemos que maioria dos casos de abuso ocorrem dentro docontexto familiar, por pessoas próximas que desempenham papel de cuidador, tendo com a vítima umarelação hierárquica, de poder e subordinação. De forma que o abusado pode usar de seu papel decuidador e da confiança que a criança tem por ele iniciar de forma sutil o abuso.À medida que o abuso avança uma série de estratégias de manipulação são usadas pelo agressorpara manter o ciclo do abuso, entre elas a “Síndrome do Segredo”, que compreende o uso de ameaças ebarganhas por parte do abusador para garantir que a vítima mantenha o abuso em segredo. As ameaçasenvolvem muitas vezes ameaças de agressão física ou de morte de pessoas próximas ou à própria criança,ou ainda, de que se for revelado ninguém acreditará e ela será castigada. O abusador também podechantagear a vítima utilizando a ambivalência e o afeto que a criança nutre por ele como figura de apego,afirmando que ele e outros familiares pode ser presos caso revele seus atos, podendo a criança serafastada da família. As barganhas também se dão através de presentes e outras ofertas à vítima em troca...
21 de Agosto de 2020